Aniversariante!
Na cidade, envergonhada, corria para atrás da porta quando as pessoas queriam brincar, agradar, fazer festa com essa criança.
Era bichinho do mato, pois, no Pantanal, o convívio era restrito a uma meia dúzia de gente e dezenas de bichos, muito mato, água, trilheiros, cacimbas, grotas, puleiros.
Era tudo assustador para quem habituou-se com ranchinho de tábua, teto de palha, chão de terra batido, formiguinhas, barulhinho de chuva na lata, cavalo manso, flores nos caminhos e papel higiênico de folha de mandioca.
Uma casa nova, de material, na cidade, cheia de vizinhos, com uma parte pintada de amarelo, outras partes nas cores azul, cor de rosa e uma porta grande, com chaves.
A TV, era Colorado RQ, de pernas palitos, tinha enceradeira,um liquidificador com um copão de vidro, ferro elétrico com um fiozão que dava medo, um jogo de copa, de fórmica, com uma mesa muito massa, que estendia-se.
A carne chegava com o açougueiro simpático, gritando, deixando uma travessa grande, funda, esmaltada,na janela.
O leite vinha de carroça com uns galões enormes.
De vez em quando vinha uma japonesinha vender Avon pra mãe, era uma festa quando chegava o perfume Charisma e baton verde com sabor de coco .
A mãe tinha uma penteadeira com creme Pond&39;s, pó compacto Promessa, leite de rosas, talco Cashmare Bouquet e colônia Contouré, que delícia!!
Observar sempre foi o forte dessa menina, ela ficava no colo da mãe, a noite, a mãe proseando e a voz ia sumindo..sumindo...como isso era bom!
O pai, super carinhoso, tomava umas pingas brabas, mas, era só carinho e amor com sua menina!
Típico pantaneiro, andava armado, possuia uma imponência invejável e , apesar da rudeza, era o cara mais engraçado daquelas paragens.
A vida era isso...pasmaceira, comida boa, amigos leais, amores duradouros, lealdades, professores respeitados, quermeces, bicicletas, bola, queimada, batizado das bonecas, passaralho, esconde esconde, matinê no Cine Glória, Jogos da Primavera, Correio Elegante, namoricos, pai brabo, irmão amigo, amigo irmão, avós doces, dedicados, tios cuidadosos, cumpadrios....
Só que o tempo passa... e, nostalgias à parte, passou rápido demais, parece que foi ontem: a escola, a igreja, o Clube Feminino, o carro no caçapava, o jogo no Norusca, os bobes no cabelo, os casamentos, feitos e desfeitos...os filhos, os avós adoráveis, os amiguinhos dos filhos, as referências todas, da cidade, do Pantanal, dos familiares, dos que cuidaram da vida da menina moça, da moça exuberante, da mulher!
Pra quem aprendeu extrair poesias dos paralelepípedos e é capaz, ainda, de citar o nome dos moradores de cada casa, cada rua da cidade, para quem conheceu a luz da lua como primeira referência de luz, depois as velas e lamparinas e sabe ainda os apelidos de muita gente daquele lugar...
É.. o tempo passa... passou, muitas porradas da vida, desacertos, desencontros, batendo cabeça na vida, amando, sofrendo, chorando, sorrindo, vivendo... gargalhando, muita ousadia, coragem, dificuldades, amarguras, teimosias...
A opção ideológica diferente do esperado pela família, julgamentos, enfrentamentos,força, resistência feminina, altivez, loucuras, delicadezas, impetuosidades, simplicidades...
Um desejo profícuo de mudar, de ousar, de contestar...sempre.
A humildade ensinou muito, ensina muito ainda, na mansidão ou na dor, porque aprender é um estado de ser eterno.
E o decorrer dessa narrativa, que eu tento simplificar com adjetivos, como um auto retrato que, diga-se de passagem, não é nada fácil fazer em palavras, pretende ser, hoje, só um "pit stop" da vida para dizer, a mim mesma, que tem sido válido, que não estorvo os outros, que me doo sim, inteiramente, e acredito, ainda, no amor, nas pessoas, na bondade e na poesia.
Fazer 55 anos transborda de literatura, vivendo dela, amando, lutando, enfrentando tudo com fé, muita paciência e silêncios... adquirir sabedoria e humildade, à cada dia, ter a minha mãe, meus filhos, a convicção das escolhas adequadas, olhar para trás, para tudo, respirar fundo e ainda lutar para salvar, melhorar esse país! Valeu, valerá, cada passo, todo amor, minha alegria, a poesia, os bons amigos, o meu amor!
Aquela menina de trancinhas está envelhecendo com a doçura dos cabelinhos na cor de puxa puxa, brincando ainda, de fadas e de bruxas, com a memória afetiva aguçadíssima, cheia de amor para doar!
Feliz aniversário pra mim!
Raquel Anderson