Quarentena de crianças divide especialistas após crise entre cidades italianas
Publicado em 03/04/2020
Editoria: Saúde
Saída para 'hora do ar' é defendida por grupos que veem risco de acidentes domésticos e depressão
Alterações no sono, variações bruscas de humor e aumento dos acidentes domésticos são os efeitos mais observados, por pais e médicos, das primeiras semanas de quarentena vividas pelas crianças do norte da Itália, onde as escolas estão fechadas desde o dia 24/2 e, há quase um mês, é proibido sair de casa sem motivo de saúde ou trabalho.
Consequências que já são visíveis e, por enquanto, contornáveis, mas que podem se agravar com a duração prolongada das medidas de distanciamento social implementadas para controlar a difusão do coronavírus, que já contaminou na Itália mais 115 mil pessoas e havia matado quase 14 mil até 2 de abril.
Caso a estabilidade dos números se confirme, um relaxamento gradual das restrições é esperado para começar a partir do dia 14/4, mas as escolas não têm data para retomar as atividades presenciais. Cresce a impressão de que o ano letivo em curso, previsto para terminar em junho, possa ser encerrado sem o retorno às aulas.
Diante desse cenário, a situação das crianças virou, nesta semana, um debate nacional que envolve pais, especialistas, governos regionais e o primeiro-ministro. De um lado, um grupo defende que é preciso pensar em medidas especiais para garantir a saúde das crianças. De outro, estão os que dizem que, com tantos contaminados e vítimas, não é hora de amolecer as regras.
Associações de pais nas cidades de Milão e Florença se mobilizaram para pedir ao governo permissão para as crianças saírem às ruas um pouco por dia.
"Elas estão obrigadas a ficar 24 horas por dia entre as paredes de casa, frequentemente em apartamentos muito pequenos, dividindo o espaço com tantos familiares, e isso, como já evidenciado por pediatras e psicólogos, a longo prazo pode fazer muito mal à saúde física e mental", diz trecho da carta aberta de pais de Milão ao governo. "Pedimos uma hora de ar para crianças e adolescentes, sem desrespeito às regras de distância de segurança."
Os genitores florentinos vão na mesma linha, mas, em vez de uma, pedem meia hora diária. "Respeitamos o direito dos cães de poderem satisfazer suas necessidades fisiológicas em repetidos passeios ao longo do dia", afirmam, também em carta. "Estamos preocupados com o fato de que ninguém tenha colocado seriamente o problema das crianças."
Diante do apelo, o premiê Giuseppe Conte abordou a questão em seu discurso na TV na quarta-feira (1º), mas não modificou as regras. "Não autorizamos a hora do passeio com as crianças. Mas, quando os pais forem ao mercado, como as crianças são as únicas que não podem sair de casa, é consentida a companhia de uma delas", afirmou. "Mas não podemos baixar a guarda."
Para o psicoterapeuta Alberto Pellai, pesquisador do departamento de ciências biomédicas da Universidade de Milão, o debate acontece agora porque as crianças foram esquecidas pelas autoridades sanitárias, por não estarem no grupo de risco do coronavírus.
"Como elas não são uma emergência clínica, não ficam doentes, não morrem e não enchem os pronto-socorros, estão invisíveis. Ninguém pensou em determinar aquilo que elas precisam para estarem bem", disse à Folha.
"Não sei dizer se a &39;hora de ar&39; é a resposta. Mas é muito importante, neste momento em que estamos tentando sobreviver sem poder viver, entender o que significa fazer sobreviver uma criança", afirma. "Uma criança desprovida de relações sociais e do corpo é uma criança em grande sofrimento. Se não podemos dar-lhes uma hora de ar, devemos fornecer aos pais outras indicações do que fazer."
Segundo ele, muitas das famílias têm competências para permitir que as crianças se autorregulem emocionalmente diante das novas restrições. Mas, em muitos casos, isso não acontece.
Devem receber mais atenção: quem vive em casa muito pequena, sem varanda, sem jardim ou pátio interno no prédio; filhos únicos; famílias que estavam fragilizadas antes do coronavírus, em processo de separação, por exemplo; e menores com necessidades educativas ou motoras específicas.
As consequências a longo prazo da quarentena domiciliar prolongada se dividem em dois grupos, segundo Pellai.
"De um lado, o risco é hiperatividade e desregulação emocional. Quando a criança se torna sempre mais agitada e nervosa, e a oferta dos pais de contenção e regulação não é adequada, a criança se desequilibra nessa perspectiva hiperativa. É isso o que chamo de bomba-relógio. Depois de tanto tempo assim, não será fácil a criança reencontrar o equilíbrio funcional", descreve o psicoterapeuta.
O segundo risco é o extremo oposto, com as crianças se tornando cada vez mais recolhidas, isoladas e apáticas. "Enquanto a primeira criança incendeia tudo, a segunda é como se estivesse congelada. A depressão infantil existe."
"Em ambos os casos, o elemento de regulação é o adulto. Se ele consegue continuar com energia, vital, disponível, cuidadoso, competente, em condição de oferecer experiências nutrientes e estimulantes à criança, esses riscos podem ser evitados", afirma Pellai.
Nas conversas entre mães e pais da área de Milão, há relatos de crianças que se tornaram mais sonolentas ou que passaram a dormir menos, explosões de raiva ou crises de choro desproporcionais a frustrações cotidianas comuns, como não conseguir abrir uma torneira.
A arquiteta brasileira Flavia Lourenção, 38, que mora na Itália há 12 anos, notou que seu filho único, de 4 anos, perdeu o hábito da soneca diurna. "Até tudo isso acontecer, ele ainda dormia à tarde na escola. Nos primeiros dias em casa, dormiu tranquilo. Mas, com o passar dos dias, não está querendo mais. Até porque ele está dormindo bastante à noite", conta.
Na sexta semana sem aulas, ela conta que o fuso horário da casa avançou entre uma hora e meia e duas horas, com todos indo dormir e acordando mais tarde.
Outra diferença é que, no início da quarentena, ele perguntava frequentemente sobre quando voltaria à escola. "Agora já se acostumou com a situação, se habituou com o fato de que ainda vai durar."
"Mas não sinto que ele esteja sofrendo. Ele parece feliz de estar com a gente em casa, brincado bastante com ele. Eu e meu marido não estamos conseguindo trabalhar o tempo todo, até porque a cabeça não deixa, então temos dado bastante atenção para ele", diz.
Para o médico Paolo Biasci, presidente da Federação Italiana de Médicos Pediatras, essa maior proximidade é o que faz a diferença. "Tudo depende da família e dos pais, em como eles ajudam as crianças durante essa permanência em casa", disse.
"Sabemos que as casas não são todas iguais, em que nem sempre é possível ter relação com o externo, que algumas são apertadas e cheias, mas algum movimento físico dentro é sempre possível." A federação é contra a liberação da "hora do ar". "O mais importante é ficar em casa."
Responsável pela Associação Cultural dos Pediatras da Lombardia, a médica Raffaella Schirò também é contra o relaxamento das medidas de contenção social para as crianças.
"Os grupos de pediatras de Milão não estão de acordo com a &39;hora do ar&39;. As crianças são aquelas que se adaptam mais facilmente, são as mais resilientes. Os problemas muitas vezes são dos pais, que têm muita ansiedade. E as crianças precisam de uma correlação emocional com eles."
Segundo ela, além de queixas de distúrbio de sono, outra evidência apareceu nas últimas duas semanas. "Estamos notando mais acidentes domésticos. Crianças que batem a cabeça, se cortam, se empurram. Os pediatras estão em alerta sobre possíveis casos de maus tratos. Se não se consegue entretê-los ou não há tempo para isso, ou o espaço é muito pequeno, com muitas crianças juntas, o risco de isso acontecer é maior."
› FONTE: Folha