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Produção da farinha consolidou território quilombola em Aquidauana

Publicado em 18/02/2024 Editoria: Cidade


Sede da farinheira construída perto da associação, usada pela comunidade (Foto: Marcos Maluf)

Sede da farinheira construída perto da associação, usada pela comunidade (Foto: Marcos Maluf)

Comunidade no distrito de Piraputanga se formou na década de 1950 e descendentes temem pela manutenção das tradições
 
“Sou nascida em Tapiramutá, na Bahia, vim para cá com 4 meses. Pai e mãe falavam que a gente foi tudo de caminhão &39;pau de arara&39; para São Paulo. Chegaram na Estação da Luz 55 pessoas, grandes e pequenas. De lá, pegamos trem para Três Lagoas, dormimos lá e pegamos outro trem. Aí chegamos em Piraputanga”. Foram 14 dias de viagem que acabou no dia 15 de dezembro de 1952.
 
A memória de Adesuíta Correia dos Santos, 72 anos, sobre a chegada a Mato Grosso do Sul foi construída pelos relatos feitos diversas vezes pelos pais. As 55 pessoas “grandes e pequenas” ajudaram a fundar a comunidade quilombola Furnas dos Baianos, em Piraputanga, distrito de Aquidauana, a 141 quilômetros de Campo Grande. A viagem ao território é feita pela MS-450, passando pelos paredões da Serra de Maracaju e acesso estrada vicinal de cerca de 3 km, sem asfalto.
 
A produtora rural diz que é “a mais velha dos velhos da comunidade”, formada por famílias oriundas de Tapiramutá e Mundo Novo (BA), que enfrentavam dificuldades para manter o cultivo de mandioca em terras nordestinas.
 
A idosa conta que um dos tios ficou sabendo “de um senhor Celso” que o sul de Mato Grosso era terra boa para recomeço e revolveu vir antes, para checar a proposta. Chegou a essas terras entre 1951 e 1952 e gostou do que viu. “Ele voltou lá para Bahia e falou ‘olha, lá tem muita água, não tem sacrifício e tem água doce”. Os parentes juntaram as economias e se arriscaram na empreitada.
 
O pai de Adesuíta, João Correia dos Santos, contava que “o céu era só chuva” em Piraputanga e os recém-chegados receberam guarita de dono de galpão. Aqui, começaram a negociar compras com proprietários das terras que já estavam em MS e, aos poucos, começaram a se tornar donos dos seus hectares.
 
Os tios de Adesuíta conseguiram comprar terras antes de João Correia, que ainda ficou dois anos trabalhando em uma fazenda até adquirir chácara em Camisão. Na década de 1960, o patriarca comprou de uma família japonesa as terras na região que hoje são as Furnas dos Baianos, mas só se mudou em definitivo em 1972. A área de Camisão foi vendida em 1981.
 
O dinheiro que sempre os manteve veio da produção da farinha, atividade que já era desenvolvida no Nordeste. A exemplo do que viveram por lá, a vida também mostrou desafios por aqui.
 
“Era chuva direto, muita lama, as carretas de boi atolavam, para chegar em Camisão levava umas 3h de viagem”, conta a idosa. A estrada somente foi melhor estruturada no fim da década de 1970. A mãe de Adesuíta, Cornélia Santos Correia, demorou para se acostumar e brincava que queria voltar para a Bahia.
 
A subsistência pela produção da farinha é tradição que se mantém nos tempos atuais. Sebastião Correia dos Santos, irmão de Adesuíta, auxilia no trabalho e lembra que o trabalho na antiga Casa de Farinha era “tocada a motor”. O outro irmão, José Correia dos Santos, lembra dos dois bois que trabalhavam no arado da terra. "Esses bois que criou nós (sic)", diz, mostrando a foto carregada pela irmã, com os animais. Um deles morreu de velho e, o outro, enforcado, ao tentar se abrigar da chuva e se enganchou na corda.
 
Agora, a comunidade tem a farinheira da associação e trator que auxilia no plantio. “Ficou tudo mais fácil”, diz José. A família mantém a antiga casa da farinha como lembrança dos tempos antigos. "O resto aqui todo mundo derrubou [casa de farinha]".
 
Sebastião mora em outra propriedade rural com a esposa e vai todo dia até a chácara para trabalhar com Adesuíta, José e o outro irmão. No começo de fevereiro, estavam fazendo limpeza da área, se preparando para o trabalho que virá. A produção diária é de 750 quilos por dia.
 
A casa construída com ajuda dos parentes já foi morada de cerca de 10 pessoas, mas hoje é dividida por Adesuíta e dois irmãos, que nunca se casaram e trabalham na farinheira. Mas, nas datas comemorativas, os espaços da ampla casa são preenchidos com os sobrinhos, primos e netos.
 
Apesar da proximidade, Adesuíta não tem expectativa de que as novas gerações vão manter a tradição da produção da farinha ou fixar residência nas Furnas dos Baianos. “Tem uns que falam que não conseguiam ficar aqui, que não tinha água gelada, era muito quente; aí a luz chegou, tem ventilador, mas agora diz que não consegue ficar no mato”. A esperança reside em um dos sobrinhos, que “gosta da vida no mato”, diz.
 
Potencial – Próximo de Adesuíta, há outras duas propriedades, uma delas, do irmão do pai, que está com 95 anos e muito adoentado.
 
Os outros imóveis estão espalhados, em área que não foi delimitada pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), cujo processo de regularização como território quilombola segue indefinido. Os descendentes vivem da produção da farinha, vendida nos restaurantes e nos comércios de Piraputanga e Aquidauana.
 
Ao todo, 35 famílias residem ou têm propriedade nas Furnas dos Baianos, conforme levantamento realizado pelo Incra. Destas, 25 são de descendentes dos negros que vieram da Bahia, segundo informações de Ivete Carreira Pires, 65 anos, presidente da Associação da Comunidade Negra Rural Quilombola de Furnas dos Baianos.
 
As outras 10 propriedades são de famílias que não têm relação com os migrantes que formaram a comunidade quilombola e compraram as terras ao longo dos anos, também de moradores sem essa relação. Ivete é exemplo disso. Ela e o marido, João Batista Pires, 68 anos, vieram de São Paulo e compraram o sítio há 31 anos, onde passaram a morar em definitivo há 10, após aposentadoria.
 
O coordenador estadual da Fenaq (Federação Nacional das Associações Quilombolas de MS), Valdecir Amorim, explica que essa é característica existente em outros grupos quilombolas pelo Estado, sendo “multicultural”. Na Águas do Miranda, em Bonito, por exemplo, são 14 famílias de descendentes, mas ainda há indígenas terena, guarani e caiuá na mesma área.
 
“As comunidades estão perdendo sua identidade cultural, os mais novos não têm interesse de cuidar da comunidade”. Na Furnas dos Baianos, por exemplo, a faixa etária dos moradores é de adultos acima de 55 anos. A escola municipal construída perto da associação foi até desativada.
 
Na Furnas dos Baianos, a “forasteira” Ivete assumiu a presidência justamente depois que participou de reunião em que ninguém se interessou pela função. Saiu do encontro com a ideia na cabeça e resolveu se candidatar.
 
Ivete assumiu a associação em 2020, depois que participou de reunião de moradores e ninguém se interessou no cargo. Permanecerá na função até 2026, depois de recondução e ajuste no tempo do mandato.
 
A meta a curto prazo é terminar a obra do galpão da associação, reconstruído de alvenaria depois que a estrutura feita com teto de palha pegou fogo. Além do espaço, usado para eventos, também estão sendo finalizados e/ou reformados o banheiro, ateliê de costura e a sala de computação. A previsão é que os trabalhos sejam concluídos até março.
 
Ao lado da associação está o Centro Comunitário de Produção Furna dos Baianos, inaugurada em maio de 2021. O maquinário é usado pelos produtores rurais da comunidade, que vendem a farinha e destinam 10% dos lucros para a associação, que se sustenta com esta receita.
 
Outro projeto, que ainda será avaliado, é fomentar o ecoturismo. Assim como a Furnas de Boa Sorte, em Corguinho, a Furnas dos Baianos é rica de belezas naturais, sendo área de transição do Cerrado para o Pantanal. Também conta como atrativo a Serra de Maracaju, pacote ideal para trilha, trekking e rapel e passeios de cachoeira. “Não existe estratégia ainda pensada, essa é outra etapa”.
 
Ivete diz que o desenvolvimento do turismo também depende da cooperação dos moradores, que podem abrir as portas para receber visitantes ou permitir o camping, por exemplo.
 
O potencial é grande. Além do turismo, a região já atrai centenas de pessoas para o Arraial dos Baianos, festa que foi interrompida por 10 anos e foi retomada há dois anos, sempre em julho.
 
Entraves - Adesuíta diz que nunca pensou no turismo como opção de renda. O irmão, Sebastião, já tem outras ideias. “A gente tem que aceitar, né? Tá vindo devagar, vai abranger a gente, vai ter que inventar alguma coisa também, não vamos ficar de braços cruzados, vendo os outros ganhando dinheiro”.
 
Ivete e João dizem que a instabilidade no fornecimento de energia é problema para o desenvolvimento do ecoturismo. “No ano retrasado, acabou luz na véspera de Natal e voltou só duas da manhã”. A estrada também é desafio. O que era estratégico na época da vinda dos ex-escravizados, ou seja, as trilhas nas regiões de furnas, hoje representa dificuldade para quem deseja acessar as regiões, como na Furnas da Boa Sorte, em Corguinho.
 
A antiga ponte será reformada pela Prefeitura de Aquidauana. A estrada depende de execução da Agesul (Agência Estadual de Gestão de Empreendimentos de Mato Grosso do Sul).
 
Furnas dos Baianos é atendida pela Coeso (Cooperativa de Energização e Desenvolvimento Rural do Sudoeste Sul-mato-grossense). A reportagem não conseguiu contato com a cooperativa para falar de melhorias no sistema de fornecimento de energia.
 
Pertencimento – Desde janeiro de 2007, a comunidade tem certificação de território quilombola dada pela Fundação Cultural Palmares, mas, no Incra, o andamento para portaria de reconhecimento ainda está pendente.
 
A professora e presidente do Grupo Tez (Trabalho Estudos Zumbi), Bartolina Ramalho Catanante, reforça que a falta de reconhecimento definitivo representa insegurança constante para as comunidades quilombolas e indígenas.
 
Outro ponto fundamental, segundo Bartolina, é analisar alternativas que os mais jovens se interessem em se manter na comunidade. “A juventude quer o que o mundo moderno oferece e isso é justo, quem mora no campo tem que ter o mesmo benefício de quem mora na cidade”, disse. “Essa questão cultural precisa ser estimulada, a identificação do jovem com sua cultura e que seu pertencimento seja muita forte para que permaneça na terra e no território”.
 


› FONTE: Campo Grande News